terça-feira, 11 de março de 2014

O funeral (1980)


Para Milton o dia começou assim, o sol vencendo as folhas rendadas do enorme flamboyant e aquecendo duas ou três fileiras de carteiras do outro lado da janela, cuja

cortina aguardava alguma atenção.

Muitos colegas, ainda naquele esforço arrastado para despertar completamente, faziam questão de deixar claro seu pouco interesse na matéria. Mas ele não; estava ansioso, quase eufórico.


Aluno novo, Milton era um garoto tímido. Branco demais para o padrão mulato-cafuzo-mameluco da esmagadora maioria daquela turma e, porque não dizer, daquela cidade. Foi logo sendo apelidado de galã, já que os traços de seu rosto eram também bastante distintos, refinados e harmoniosos. Até hoje não se sabe se ele era tímido por sentir-se estranho ou por ser tímido e ponto.


A professora entrou na sala com a costumeira apatia estampada na cara. Após a chamada seu semblante alterou-se, assumindo um ar um tanto sádico, sutil demais para sugerir o que se seguiria. Parada em pé diante de sua mesa ela girou o tronco ligeiramente para alcançar, sem olhar, sua temida pasta vermelha. Durante a manobra iniciou o seu breve e retumbante discurso: "Tudo bem que vocês ainda cometam erros primários de grafia e pontuação, isso vai ser difícil consertar, mas o que eu tenho aqui e faço questão de ler para vocês é uma redação esdrúxula. Quando eu disse que o tema era livre, eu não quis dizer ridículo. O que um aluno fez foi transformar uma redação em uma sequência de ideias tão absurdas que eu fiquei com vergonha por ele. Vou ler para vocês mas vou poupar este aluno da exposição de seu nome."

A redação de Milton tratava de uma casa na virada do milênio, quando controles remotos acionariam todos os seus equipamentos e, com um toque, tudo estaria organizado e adaptado.

Não foi preciso dizer o nome do aluno para que ela sepultasse o entusiasmo do garoto que, aos 12 anos, passou a acreditar que seria incapaz de escrever novamente o que imaginava. Além disso, a expressão triste em seu rosto denunciou-o para a turma, que logo passou a dirigir-lhe as gargalhadas, enquanto a professora de português selava o cortejo.

4 comentários:

  1. Também conheci esse moço e sua história.
    O que triste é pensar que existem muitos Miltons pelo mundo, além de saber que pessoas que deveriam ser educadoras sejam responsáveis em sepultar (como o texto diz) os sonhos, a liberdade de escrita, a imaginação de um jovem de 12 anos.
    O bom é que no caminho de alguns Miltons, não todos infelizmente, aparecem pessoas que valorizam sua arte, suas produções, que os libertam do estigma deixado pela memória de uma passado distante.
    Também boto fé nesse moço e desejo vida longa a suas escritas, narrações, e que venham encharcados de muita imaginação e alegria que só as palavras podem proporcionar!

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    1. Para quem ainda não conhece, a autora do comentário acima é a Valéria Goubert. Ela me despertou para a possibilidade de voltar a escrever depois de longos 10 anos de um medo paralisante. Foi ela quem disse, com seu jeito carinhosamente único e honesto: "Nossa Frank (como só ela me chama), você escreve bem!"
      E até hoje ela segue me incentivando, com a mesma certeza. E eu acabei acreditando no que ela me disse. E foi muito graças a ela que eu consegui apostar em mim mesmo. O Milton branquelo na verdade sou eu, o Zé Franco mulato.

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    2. Camila Marcarini!
      Esta foi a autora do comentário.

      Mil perdões, Camila. Como disse a você, eu havia comentado sobre o texto também com a Valéria, antes de publicá-lo, por isso pensei que fosse ela. Os estilos são bem parecidos!

      Um beijo grande e muito obrigado pela tremenda força!

      ;-)

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  2. Frank, na verdade somente agora estou lendo, emocionada, o seu conto. É possível sentir o calor do sol passando entre as folhas do flamboyant. E a sombra rendada sobre a carteira e até ouvir o burburinho da classe e sentir o cheiro do assoalho e do giz. Você escreve bem. Eu nunca vou me cansar de afirmar isso. Camila, me junto a você e desejo vida longa a esse moço.

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